sexta-feira, 20 de maio de 2016

Integração regional e capitalismo dependente latino-americano: entrevista com Nildo Ouriques para o Jornal dos Economistas do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro (CORECON-RJ)



 Um dos principais especialistas no tema da integração econômica dos países da América Latina, Nildo Ouriques é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina e presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA-UFSC).

P: Como você caracteriza a integração das economias dos países latino-americanos hoje? Ela é satisfatória? 

R: Não, é completamente insatisfatória por várias razões. A primeira é que, em termos de integração, nós sofremos uma grande derrota em 1994, quando o México assinou um tratado de livre comércio com o Canadá e os Estados Unidos e envolveu mais adiante, através do CAFTA, numa mesma modalidade de integração com países imperialistas, toda a América Central e República Dominicana. Isso tirou da órbita latino-americana países importantíssimos e duas regiões: a América do Norte e América Central. Restou como alternativa de integração a evolução do Mercosul. E, de fato, a entrada da Venezuela e a possibilidade de entrada de Equador e Bolívia, que é sempre presente, assinalou que o Mercosul podia ser a primeira iniciativa depois de 1825 de uma efetiva integração latino-americana...

 O grande problema foi, e esse é o segundo aspecto, que essa integração latino-americana sofreu o impacto primeiro da onda neoliberal e depois de um desenvolvimentismo pobretão, sem dentes para morder, de tal maneira que a integração latino-americana foi comandada pela expansão das multinacionais. Para dar um exemplo: no caso do Mercosul, nos últimos anos, dentre os quinze maiores exportadores brasileiros para a Argentina, treze eram multinacionais. A décima quarta empresa era a Petrobras e a décima quinta era a Odebrecht. A integração latino-americana, que é uma arma de emancipação dos Estados contra a globalização capitalista, ficou limitada. O terceiro aspecto foi a diminuição do ímpeto transformador da revolução democrática bolivariana na Venezuela. As alternativas que o então presidente Chávez assinalava, como a criação de empresas gran-nacionais, uma maior integração entre os países latino-americanos, investimentos em ciência e tecnologia, etc., nunca foram levadas a sério pelos governos brasileiros, sejam eles tucanos ou petistas. O “petucanismo” aqui continuou comandando as ações e matou no nervo uma possibilidade de integração que, para nós, teria sido fundamental.

P: Qual o modelo que você defende e qual a maneira de superar esses obstáculos? 

R: Por que a ideia de integração latino-americana nunca gozou de boa reputação entre nós, inclusive entre os economistas progressistas? Porque há a ideia obviamente falsa de que o Brasil poderia, sozinho, buscar um caminho de desenvolvimento. Os europeus fizeram a Comunidade Econômica Europeia. Os asiáticos zeram uma esfera de prosperidade e estão lá, se articulando. Os EUA tomaram um monte de iniciativas para debilitar a América Latina e fortalecer uma “área vital” para o desenvolvimento capitalista estadunidense. Só aqui no Brasil, a integração latino-americana não vitalizou, porque no fundo, muita gente supõe que a Avenida Paulista e o coração burguês do Brasil, que é São Paulo, podem levar adiante o desenvolvimento prescindindo da integração latino-americana. A história tem demonstrado cabalmente que essa visão não corresponde aos fatos. O Brasil não pode pensar uma transformação interna se não tiver um projeto que alcance os demais países latino-americanos com os quais nós dividimos fronteiras.

 Só para te dar um exemplo: é impossível nós pensarmos uma alternativa para o desenvolvimento da Amazônia se não fizermos um acordo com os demais países. A Amazônia não é só brasileira, tem uma parte venezuelana, uma parte peruana; ela tem que ser incorporada em um projeto que necessariamente leva a um acordo com os países vizinhos.

 Uma integração supõe, em primeiro lugar, a ruptura com o imperialismo estadunidense. Isso pode soar doutrinário, mas enquanto as multinacionais estiverem comandando o desenvolvimento capitalista brasileiro, cada vez mais internacionalizado em tudo, no consumo, no cotidiano, na produção, cadeia de valor etc., a integração latino-americana vai seguir apenas sendo um mero corredor para a exportação de produtos estrangeiros.

P: Muitos economistas defendem acordos internacionais com a União Europeia e os EUA e os grandes acordos, como a rodada de Doha. Por que você acha que a integração com a América Latina e não com países desenvolvidos seria o melhor caminho para o Brasil?

R: Basta observar os resultados concretos obtidos pelo NAFTA, o tratado de livre comércio entre EUA, Canadá e México. O México foi varrido do mapa da indústria. É um país que virou um apêndice, um Porto Rico grande. Tudo na economia mexicana depende do que ocorre nos EUA.

 Há uma devastação no campo mexicano. O país que deu ao mundo a cultura do milho tem que importar o produto dos EUA. A agricultura mexicana virou uma fonte de êxodo rural – são milhões de trabalhadores que saem do campo e vão para os EUA – e passou a importar produtos que eram produzidos com grande qualidade e sem a transgenia, que favorece as multinacionais estadunidenses.

 Houve uma devastação no campo da economia, da indústria e da agricultura, e uma internacionalização do comércio: as grandes redes de supermercados e atacadistas do México são todas empresas multinacionais. Há um grau de desnacionalização sem precedentes. Nós sabemos a razão pela qual o México não é discutido no Brasil: nos EUA, o establishment chega a dizer que se trata de um Estado falido, incapaz de assegurar funções mínimas em termos de segurança, o que para eles signi fica o controle da força de trabalho migratória.

 Quando nós observamos o resultado concreto da integração de um país dependente e subdesenvolvido e um país rico, concluímos que o poder do país do minante aumenta e o poder do dependente diminui. E todas as razões que levavam a fazer um acordo, supostamente em nome da modernização da economia, acabam aprofundando a baixa produtividade e internacionalização do mercado interno e causam fuga de empregos, dependência tecnológica e cientí fica e migração em massa. Eis a razão pela qual o México nunca é discutido na imprensa brasileira.

 Eu agregaria mais um exemplo: o Peru e a Colômbia, que zeram acordos e tratados de livre comércio com os EUA. O que está ocorrendo na Colômbia e no Peru, com a mesma velocidade que ocorreu no México, é uma superinternacionalização da agricultura, uma devastação industrial que está devolvendo os dois para o século XIX, e uma dependência completa – militar, econômica e cultural – dos EUA.

P: A imprensa brasileira cita o caso do México e faz comparações com o Brasil, no sentido que o Brasil está atravessando uma grande recessão, e alegam que um dos nossos problemas é que nos isolamos comercialmente, não temos tratados, que o México estaria em melhor situação justamente porque teria essa integração.

R: A abertura do comércio mexicano para exportações foi feita na base da indústria maquiadora. Tudo é produzido nos EUA e vai montar o produto na área da fronteira (do lado do México) para depois exportar para os EUA. Gastam no país hospede, no caso o México, apenas 4% do volume produzido, com salários baixíssimos.

 Política comercial exitosa, ao contrário do exemplo do México, Colômbia e Peru, é a chinesa, porque por trás da expansão comercial tem a expansão industrial. No caso mexicano, ao lado da expansão comercial, tem a dependência tecnológica e a devastada da indústria. O grau de dependência se aprofundou, a autonomia se reduziu quase a zero. O argumento simplista daqueles que defendem a integração com os países desenvolvidos, como esse embaixador Barbosa, esses centros que estão a toda hora sendo festejados pela mídia brasileira, se prende apenas a um dado muito pobre, que é o volume de comércio exterior. Ora, é patético que isso seja colocado como um critério de êxito. Essa gente não está discutindo efetivamente qual foi o resultado desse volume de comércio naquilo que é fundamental, que são as forças produtivas. O comércio está desenvolvendo ou atro ando as forças produtivas? Isso nem é um argumento de Marx, é um argumento de List. Esse é um argumento de 1840. No caso de Peru, Colômbia e México, o comércio está atro ando as forças produtivas. E é isso que eles querem para o Brasil.

P: Que modelo de integração você defende para a América Latina? Incluiria uma moeda única?

R: Podem até chegar a isso, mas o que um processo de integração tem que ter é um projeto produtivo baseado na indústria, que aproveite todas as potencialidades de cada país e desenvolva a ciência e tecnologia. Se não tiver isso, não tem condição de pensar em integração comercial, de infraestrutura, de moeda etc.

 Depois disso, com muito mais facilidade, podemos discutir aspectos de integração monetária que nem sequer na Europa foram resolvidos. Porque lá tudo foi feito com base no marco alemão, e nós vimos que, em função disso, todas as promessas de certa igualdade na integração foram por água abaixo. Espanha, Itália, Grécia, Irlanda – todos esses países sucumbiram. A Inglaterra jamais entrou e Alemanha e França estão disputando o resultado do espólio. Mas foi uma integração baseada nos monopólios e na força do Estado alemão, que é um estado protoimperialista.

P: A recente vitória de um governo conservador na Argentina e as dificuldades que Maduro está tendo na Venezuela podem representar um fator contra essa integração?

R: Sim, é um obstáculo importante, mas eles não decidem, porque os governos contam, mas as classes sociais contam mais ainda. O governo do presidente Mauricio Macri vai ser ultraconservador, mas vai enfrentar um movimento social com grande tradição de luta, e isso não vai ser um domingo no parque. Vai ser uma luta de mega dimensão, em que nós vamos ver que o mundo não acaba quando um governo de natureza mais ou menos popular como o de Cristina Kirchner desaparece. Não é o m da história, como alguns querem fazer crer. O movimento operário e camponês e as classes médias politizadas na Argentina, especialmente em Buenos Aires, vão esquentar a chapa para o Presidente Macri, que vai ter grande di ficuldade em tocar esse projeto liberal.

 O caso da Venezuela é de outra natureza. Tem um governo bolivariano, mas a revolução democrática bolivariana perdeu suas energias. Há retrocessos no aspecto da corrupção, da política industrial e comercial e na atuação do Partido Socialista Uni ficado da Venezuela, que precisa retomar o rumo.

 Do jeito que está a integração latino-americana, qualquer coisa que aconteça na Venezuela ou Argentina não interrompe a hegemonia das multinacionais, e é isso que não podemos nunca perder de vista.

O original encontra-se aqui.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

O fracasso da ortodoxia

por Victor Leonardo de Araújo* para o Jornal dos Economistas, órgão oficial do CORECON-RJ


 Até março deste ano, momento em que este artigo foi escrito, a economia brasileira está submetida ao mais longo ciclo de aperto em sua política monetária desde a adoção do regime de metas de inflação, em junho de 1999: a taxa básica de juros vem subindo há vinte meses, desde abril de 2013, tendo saído de uma meta de 7,25% ao ano para os atuais 14,25%. Em dois anos, a taxa quase dobrou e atualmente está no mesmo patamar em que se encontrava em agosto de 2006. Simultaneamente, a economia brasileira também está submetida a um ajuste fiscal bastante severo: a despeito dos economistas mais conservadores acusarem a incapacidade do governo federal em implementar uma política de austeridade, as despesas do governo central encolheram 13% nos doze meses acumulados de dezembro de 2014 a novembro de 2015, quando descontada a inflação [1].

 A combinação de aperto monetário com austeridade fiscal, contudo, não foi capaz de assegurar uma trajetória declinante da inflação: medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geogra fia e Estatística (IBGE), a inflação de 2015 foi de 10,6%, muito superior aos 6,4% de 2014. Pela primeira vez desde 2005, a inflação escapou à meta estipulada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

 O fracasso da ortodoxia em combater a inflação é evidente e sustenta-se exclusivamente numa pro fissão de fé, não existindo uma única evidência para a hipótese de excesso de demanda a ser combatida pela elevação da taxa básica de juros ou pelo ajuste fiscal: o consumo das famílias tem caído sistematicamente desde 2014; a utilização da capacidade instalada da indústria está em queda livre desde 2014, tendo alcançado em janeiro de 2016 patamares inferiores aos observados durante a crise financeira de 2008; e o PIB caiu 3,8% em 2015, contra um crescimento pífio de 0,1% em 2014, configurando aquela que será a maior recessão desde a eclosão da crise da dívida externa dos anos 1980.

 Claro está que a aceleração inflacionária ocorrida ao longo do ano de 2015 tem suas causas nos dois tipos de choques aos quais a economia brasileira esteve submetida no último ano: o reajuste de diversos preços administrados, como o petróleo e a energia elétrica; e a forte desvalorização cambial, superior a 46%. Em situações como esta, os efeitos desses choques poderiam ser ao menos parcialmente absorvidos por políticas de desonerações fiscais que pudessem mitigar esses efeitos; contudo, deterioradas pelas despesas financeiras, que alcançaram o equivalente a 9% do PIB em 2015, e acossadas pelo austericídio que tomou conta da equipe econômica e da oposição, as finanças públicas não puderam absorver os efeitos desses choques e o governo foi forçado a acomodá-los na forma de mais inflação. 

 Diante do óbvio, como explicar a insistência do Banco Central em elevar a taxa básica de juros? Até meados de 2011, a taxa de câmbio cumpriu um papel decisivo na estratégia de estabilização dos preços. Em trajetória de apreciação desde 2003, o câmbio contribuiu para contra-arrestar os efeitos altistas de outros custos, como os salários e os preços das commodities. Reconhecendo, contudo, os efeitos deletérios da combinação juros altos / câmbio valorizado sobre a economia – aumento da despesa financeira e da dívida interna, perda de competitividade da indústria com risco de desindustrialização – o governo Dilma Rousse buscou realinhar essas duas variáveis em seu primeiro mandato, reduzindo a taxa Selic e buscando uma taxa de câmbio mais competitiva e favorável ao setor industrial. A ameaça do banco central norte-americano de elevar suas taxas de juros forneceu os elementos decisivos para reverter a trajetória de valorização do Real. Desde então, a inflação no Brasil tem se aproximado sistematicamente do teto da meta de nida pelo CMN. Ocorre, contudo, que a estratégia de desvalorização cambial teria efeitos já previstos sobre a inflação, e o contrapeso seria oferecido por meio do controle de outros componentes de custos: o subsídio à energia elétrica, com impactos no orçamento primário, e o represamento dos reajustes dos preços dos combustíveis, com impactos sobre a saúde financeira da Petrobras, especialmente sob o contexto de forte elevação dos preços internacionais desta commodity, que não foram repassados ao consumidor. Finalmente, os dois anos de seca que abateram as regiões Sudeste e Sul também contribuíram para o aumento dos preços de diversos gêneros alimentícios e também exerceram pressões adicionais sobre as tarifas de energia elétrica, porque obrigaram o uso de energia termoelétrica, cujo custo maior de geração também foi repassado ao consumidor.

 Sem condições de manter represados os preços dos combustíveis e da energia, o governo anunciou fortes reajustes nestes preços no início de 2015. Em situações normais, esta política poderia ser compensada por tentativas de, ao menos, estabilizar a taxa de câmbio, mitigando seus efeitos in acionários. Contudo, as enormes instabilidades de natureza interna e externa ocorridas ao longo de 2015 – déficit em transações correntes superior a 4% do PIB, ameaça de aumento da taxa de juros nos Estados Unidos, ameaça de perda do grau de investimento – geraram um cenário no qual a taxa de juros Selic, mesmo majorada, não foi capaz de compensar o súbito aumento do prêmio de risco, perdendo sua capacidade de influenciar a taxa de câmbio – que se desvalorizou em 46% entre janeiro e dezembro de 2015 – e, por conseguinte, a inflação. Permaneceram, contudo, os efeitos deletérios dos juros elevados sobre a atividade econômica e sobre as finanças públicas, deterioradas por um déficit nominal recorde equivalente a 10,3% do PIB, dos quais insólitos 8,5% do PIB corresponderam à despesa com juros. Os rentistas só têm a agradecer, e cumprem o papel que deles se espera: pressionar por mais “austeridade”. 

 Apesar do cenário de crise econômica ainda não ter oferecido sinais de arrefecimento, o horizonte aponta para um cenário mais benigno do ponto de vista da trajetória da inflação. Os próximos reajustes de preço da energia elétrica nem de perto alcançarão aqueles realizados em 2015, já que o m dos subsídios à conta de luz já foi totalmente incorporado aos reajustes realizados no último ano; a queda do preço do petróleo nos mercados internacionais tem permitido à Petrobras recuperar com maior velocidade os prejuízos acumulados com a antiga política de represamento de preços, sinalizando reajustes mais suaves nos preços dos combustíveis para os próximos meses; o fenômeno do El Niño substituiu a seca por chuvas acima da média no Sudeste e no Sul, de modo que os reservatórios de água das usinas hidroelétricas estão abastecidos, provocando o desligamento de algumas usinas térmicas; a taxa de câmbio parece ter finalizado seu processo de realinhamento, com o banco central norte-americano tendo sinalizado claramente de que a in exão em sua política monetária ocorrerá de forma mais branda; e, finalmente, os operadores dos mercados cambiais já precificaram a perda do grau de investimento. Possivelmente alguns gêneros alimentícios ainda serão majorados, em razão de safras agrícolas menores em regiões que registraram maiores chuvas, e resta ainda uma enorme volatilidade no mercado cambial, muito mais associada ao cenário de crise política e institucional do “golpe paraguaio” que se avizinha. Para qualquer dessas causas que ainda persistem, os remédios ortodoxos de juros altos e ajuste fiscal não terão qualquer efeito.

 Em outras palavras, a combinação insólita de choques de custos que se abateu sobre a economia brasileira em 2015 não mais se repetirá em 2016. É importante que se diga, portanto, que o arrefecimento esperado para a inflação neste ano em curso não guarda qualquer relação com o aperto monetário que há dois anos vem sendo praticado pelo Banco Central, não existindo qualquer razão para a sua continuidade.

[1] Excluímos o mês de dezembro, em razão das distorções provocadas pelo pagamento das assim chamadas "pedaladas" ficais, ocorrido naquele mês. Por óbvio, o objetivo do cálculo não é a contabilidade pública em si, mas sim os efeitos do gasto sobre o ciclo econômico: o pagamento das "pedaladas", integralmente realizado em dezembro de 2015, não reflete o aumento do gasto corrente, tampouco do investimento, no mês em que foi realizado.



*É professor da Faculdade de Economia da UFF. E-mail: victor_araujo@terra.com.br